os 3 grandes
"Que bom é estar de volta. A nossa memória é frágil. Tudo acontece tão rápido que não há tempo para entender o relacionamento entre os acontecimentos"
Acende uma vela, ajeita as flores frescas, liberta um pouco de incenso no ar. Instala-se no silêncio. Aos poucos chegam as vozes. A sua, a dos seus antepassados, a das pessoas reais e imaginárias que deixa à solta na escrita povoada de espíritos e magia.
«A Casa dos Espíritos» começou por ser uma carta dirigida ao avô, «Paula» uma carta à filha em coma, «Afrodite» um retorno à vida, e a nova trilogia, iniciada com «A Cidade dos Deuses Selvagens», uma dedicatória aos netos que afirma amar incondicionalmente. Chilena, residente nos EUA, sobrinha de Salvador Allende, ex-jornalista, assumida feminista, alia a força à tragédia, o amor ao destino, o acaso à história.A vida é um caos. A ficção mente no que ordena. Quando Isabel Allende se recolhe ao silêncio do escritório em que nascem as suas histórias não é a verdade que pretende encontrar. Mas são as diferentes possibilidades de verdade que acabam por colidir entre olhares, memórias, ficções, pessoas, personagens e fantasia. Recorrendo à sua infância, munindo-se da imaginação herdada da avó materna, da disciplina incutida pelo avó, admite que por detrás do realismo – denominado por alguns de realismo mágico – se escondem pessoas que conheceu, histórias que viveu ou ouviu contar e que anotou na amálgama da memória. Contudo admite: «a memória muda, é como a imaginação, uma matéria flexível orgânica, que cresce, que se encolhe, se deforma, se tinge». Acrescenta, «Mas é também aquilo que somos» (Revista Livros). A história do Chile, a ditadura de Pinochet, a tortura, a violência, impõem um poderoso background para os romances que povoa de personagens que amamos e odiamos, que percebemos corruptas e nobres, humanas e vis.Sobrinha de Salvador Allende, deposto e assassinado nos anos 70, o seu primeiro romance espanta pela teia de emoções e olhares. No dia 8 de Janeiro, conta, recebeu um telefonema. O seu avô morria. Exilada na Venezuela desde 1973, impedida de voltar ao seu país, decide escrever uma longa carta ao avô. Carta que se converte num romance, A Casa dos Espíritos. A saga da família Trueba encontra-se em muitos pontos com a sua própria história, mas a mãe e o padrasto sempre sublinharam que aquele era mais um olhar (o seu) sobre a infância e não a verdade sobre os acontecimentos. Mas Isabel Allende alimenta-se, precisamente, não das datas dos nomes ou da exactidão dos lugares, mas das emoções, da forma como se deixou reter nas histórias que conta.Natural de Lima, no Peru, onde nasce no ano de 1942, mas de nacionalidade Chilena, filha de diplomatas, é educada pelos avós maternos até aos nove anos de idade. Rebelde, avessa ao autoritarismo do avô, vive com o primeiro marido em Bruxelas e na Suiça e volta ao Chile em meados dos anos 60 com os dois filhos, Paula e Nicolas. Escreve uma coluna de humor – a que chama “Paula” – numa revista feminina e dirige a publicação infantil, o «Mampato». Experimenta a escrita para televisão e teatro. Com a queda da democracia vê-se a obrigada a deixar o país (parte da sua família é eliminada pela ditadura) e é na Venezuela que escreve o seu primeiro grande romance. Jornalista no «El Nacional» por mais de dez anos, é a mãe que envia o manuscrito de «A Casa dos Espíritos» a várias editoras na América Latina. Só Carmen Balcells, agente numa editora espanhola, parece reconhecer-lhe o mérito. Uma aposta que se converte num estrondoso sucesso. Escrevendo em espanhol, a sua língua mãe, mas traduzida em mais de 27 línguas, todos os seus livros se tornaram, a partir desse primeiro romance, bestsellers internacionais. Sucesso que chega a transpor as fronteiras do literário ao ver os seus títulos adaptados ao cinema e ao teatro. Joe Brown tenta uma transposição do encantatório mundo d’«A Casa dos Espíritos» ao grande ecrã porém, mesmo contando com um elenco de luxo liderado por Jeremy Irons, Antonio Banderas e Winoma Ryder, falha na captação desse limbo de emoções.Com loucura, com paixãoReconciliando-se com o mundo pela escrita, compõe personagens femininas dotadas de especial intuição e força, capazes de amar e sobreviver. «Exponho-me completamente, com loucura, com paixão, com dor, com tudo» (DN). Escrever implica assim uma viagem a si que povoa do amor e da tragédia que preencheram a sua vida. Depois de «De Amor e Sombra» (1984), «Eva Luna» (1985), «Os Contos de Eva Luna» (1989), casada com um americano, residente na Califórnia, edita «O Plano Infinito» (1991) não hesitando em fazer do seu marido, Gregory Reeves, o protagonista. Acrescenta-lhe é claro a estranheza de uma chilena em terras da América. Em 1991 a sua filha, de 28 anos, entre em coma profundo e Allende vive a angústia do mutismo da filha. Apesar do ritual (meio supersticioso, meio metódico) de começar a escrever um novo livro no dia 8 de Janeiro (a mesma data em que iniciou «A Casa dos Espíritos»), a tristeza quase a afasta das palavras. No entanto, nesse mesmo 8 de Janeiro de 1992, a mãe leva-a ao escritório, devolve-lhe as cartas que Isabel lhe tinha enviado ao longo do ano e deixa-a a sós com a sua dor e amarguras. Depois das lágrimas surge a torrente da escrita. «Paula», publicado em 1994, é um comovente romance sobre a filha, «uma catarse, um exercício de dor. (...) Também é um livro de memória, realista, no qual conto a verdade sobre a minha vida. Sobre a vida da Paula. Só que a minha verdade é diferente da minha mãe ou da de Ernesto, o marido de Paula. Cada um tem a sua visão e cada visão é já ficção» (DN). Recuperando a filha entre páginas o fim do livro lança-a numa longa depressão. Em 1997, após três anos de luto, decide voltar ao domínio da pesquisa que experimentara enquanto jornalista. «Afrodite» alia culinária, erotismo, memória - temas que parecem reanimar o seu gosto pela ficção. Segue-se A Filha da Fortuna (1999) e Retrato a Sépia (2000), em que volta às personagens d’«A Casa do Espíritos». Percorrendo um período que vai de meados do século XIX (com a protagonista Eliza Sommers, em «A Filha da Fortuna») até aos anos 70 com Alba del Valle, («A Casa dos Espíritos»), Isabel completa uma trilogia sobre a história do Chile. Embora cada um dos três romances possa ser lido autonomamente, interligam-se pela continuar de personagens ou pelo aferir do passado de alguns dos protagonistas. Com A Cidade dos Deuses Selvagens, publicado em 2002, a autora inicia o que promete tornar-se uma nova trilogia de culto. Em torno da descoberta e do sobrenatural, o jovem Alexander Cold empreende numa improvável viagem com a sua avó. A procura da lendária besta do Amazonas volta ao fabuloso mágico mundo de Allende, desta feita em torno das forças animais que lideram a vida das personagens. Alexander, totem jaguar, Nadia totem águia, encontram-se entre o amor a amizade. «Os temas dos meus romances são sempre os mesmos, a liberdade, a memória, as mulheres, o feminismo, a injustiça, a ausência do pai, a crueldade, a morte», afirmaria em entrevista aquando da sua passagem por Lisboa. Um singular, por vezes interrompido, por vezes sofrido, mas sempre apaixonante retorno às matérias da vida.
"Que bom é estar de volta. A nossa memória é frágil. Tudo acontece tão rápido que não há tempo para entender o relacionamento entre os acontecimentos"
Acende uma vela, ajeita as flores frescas, liberta um pouco de incenso no ar. Instala-se no silêncio. Aos poucos chegam as vozes. A sua, a dos seus antepassados, a das pessoas reais e imaginárias que deixa à solta na escrita povoada de espíritos e magia.
«A Casa dos Espíritos» começou por ser uma carta dirigida ao avô, «Paula» uma carta à filha em coma, «Afrodite» um retorno à vida, e a nova trilogia, iniciada com «A Cidade dos Deuses Selvagens», uma dedicatória aos netos que afirma amar incondicionalmente. Chilena, residente nos EUA, sobrinha de Salvador Allende, ex-jornalista, assumida feminista, alia a força à tragédia, o amor ao destino, o acaso à história.A vida é um caos. A ficção mente no que ordena. Quando Isabel Allende se recolhe ao silêncio do escritório em que nascem as suas histórias não é a verdade que pretende encontrar. Mas são as diferentes possibilidades de verdade que acabam por colidir entre olhares, memórias, ficções, pessoas, personagens e fantasia. Recorrendo à sua infância, munindo-se da imaginação herdada da avó materna, da disciplina incutida pelo avó, admite que por detrás do realismo – denominado por alguns de realismo mágico – se escondem pessoas que conheceu, histórias que viveu ou ouviu contar e que anotou na amálgama da memória. Contudo admite: «a memória muda, é como a imaginação, uma matéria flexível orgânica, que cresce, que se encolhe, se deforma, se tinge». Acrescenta, «Mas é também aquilo que somos» (Revista Livros). A história do Chile, a ditadura de Pinochet, a tortura, a violência, impõem um poderoso background para os romances que povoa de personagens que amamos e odiamos, que percebemos corruptas e nobres, humanas e vis.Sobrinha de Salvador Allende, deposto e assassinado nos anos 70, o seu primeiro romance espanta pela teia de emoções e olhares. No dia 8 de Janeiro, conta, recebeu um telefonema. O seu avô morria. Exilada na Venezuela desde 1973, impedida de voltar ao seu país, decide escrever uma longa carta ao avô. Carta que se converte num romance, A Casa dos Espíritos. A saga da família Trueba encontra-se em muitos pontos com a sua própria história, mas a mãe e o padrasto sempre sublinharam que aquele era mais um olhar (o seu) sobre a infância e não a verdade sobre os acontecimentos. Mas Isabel Allende alimenta-se, precisamente, não das datas dos nomes ou da exactidão dos lugares, mas das emoções, da forma como se deixou reter nas histórias que conta.Natural de Lima, no Peru, onde nasce no ano de 1942, mas de nacionalidade Chilena, filha de diplomatas, é educada pelos avós maternos até aos nove anos de idade. Rebelde, avessa ao autoritarismo do avô, vive com o primeiro marido em Bruxelas e na Suiça e volta ao Chile em meados dos anos 60 com os dois filhos, Paula e Nicolas. Escreve uma coluna de humor – a que chama “Paula” – numa revista feminina e dirige a publicação infantil, o «Mampato». Experimenta a escrita para televisão e teatro. Com a queda da democracia vê-se a obrigada a deixar o país (parte da sua família é eliminada pela ditadura) e é na Venezuela que escreve o seu primeiro grande romance. Jornalista no «El Nacional» por mais de dez anos, é a mãe que envia o manuscrito de «A Casa dos Espíritos» a várias editoras na América Latina. Só Carmen Balcells, agente numa editora espanhola, parece reconhecer-lhe o mérito. Uma aposta que se converte num estrondoso sucesso. Escrevendo em espanhol, a sua língua mãe, mas traduzida em mais de 27 línguas, todos os seus livros se tornaram, a partir desse primeiro romance, bestsellers internacionais. Sucesso que chega a transpor as fronteiras do literário ao ver os seus títulos adaptados ao cinema e ao teatro. Joe Brown tenta uma transposição do encantatório mundo d’«A Casa dos Espíritos» ao grande ecrã porém, mesmo contando com um elenco de luxo liderado por Jeremy Irons, Antonio Banderas e Winoma Ryder, falha na captação desse limbo de emoções.Com loucura, com paixãoReconciliando-se com o mundo pela escrita, compõe personagens femininas dotadas de especial intuição e força, capazes de amar e sobreviver. «Exponho-me completamente, com loucura, com paixão, com dor, com tudo» (DN). Escrever implica assim uma viagem a si que povoa do amor e da tragédia que preencheram a sua vida. Depois de «De Amor e Sombra» (1984), «Eva Luna» (1985), «Os Contos de Eva Luna» (1989), casada com um americano, residente na Califórnia, edita «O Plano Infinito» (1991) não hesitando em fazer do seu marido, Gregory Reeves, o protagonista. Acrescenta-lhe é claro a estranheza de uma chilena em terras da América. Em 1991 a sua filha, de 28 anos, entre em coma profundo e Allende vive a angústia do mutismo da filha. Apesar do ritual (meio supersticioso, meio metódico) de começar a escrever um novo livro no dia 8 de Janeiro (a mesma data em que iniciou «A Casa dos Espíritos»), a tristeza quase a afasta das palavras. No entanto, nesse mesmo 8 de Janeiro de 1992, a mãe leva-a ao escritório, devolve-lhe as cartas que Isabel lhe tinha enviado ao longo do ano e deixa-a a sós com a sua dor e amarguras. Depois das lágrimas surge a torrente da escrita. «Paula», publicado em 1994, é um comovente romance sobre a filha, «uma catarse, um exercício de dor. (...) Também é um livro de memória, realista, no qual conto a verdade sobre a minha vida. Sobre a vida da Paula. Só que a minha verdade é diferente da minha mãe ou da de Ernesto, o marido de Paula. Cada um tem a sua visão e cada visão é já ficção» (DN). Recuperando a filha entre páginas o fim do livro lança-a numa longa depressão. Em 1997, após três anos de luto, decide voltar ao domínio da pesquisa que experimentara enquanto jornalista. «Afrodite» alia culinária, erotismo, memória - temas que parecem reanimar o seu gosto pela ficção. Segue-se A Filha da Fortuna (1999) e Retrato a Sépia (2000), em que volta às personagens d’«A Casa do Espíritos». Percorrendo um período que vai de meados do século XIX (com a protagonista Eliza Sommers, em «A Filha da Fortuna») até aos anos 70 com Alba del Valle, («A Casa dos Espíritos»), Isabel completa uma trilogia sobre a história do Chile. Embora cada um dos três romances possa ser lido autonomamente, interligam-se pela continuar de personagens ou pelo aferir do passado de alguns dos protagonistas. Com A Cidade dos Deuses Selvagens, publicado em 2002, a autora inicia o que promete tornar-se uma nova trilogia de culto. Em torno da descoberta e do sobrenatural, o jovem Alexander Cold empreende numa improvável viagem com a sua avó. A procura da lendária besta do Amazonas volta ao fabuloso mágico mundo de Allende, desta feita em torno das forças animais que lideram a vida das personagens. Alexander, totem jaguar, Nadia totem águia, encontram-se entre o amor a amizade. «Os temas dos meus romances são sempre os mesmos, a liberdade, a memória, as mulheres, o feminismo, a injustiça, a ausência do pai, a crueldade, a morte», afirmaria em entrevista aquando da sua passagem por Lisboa. Um singular, por vezes interrompido, por vezes sofrido, mas sempre apaixonante retorno às matérias da vida.
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